“Procuradoria denuncia ex-agentes da repressão por ocultação de cadáver
O Ministério Público Federal denunciou ontem o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra e o delegado aposentado Alcides Singillo pela ocultação de cadáver do militante Hirohaki Torigoe, 27, morto na ditadura militar, em janeiro de 1972 (…)
Na denúncia, os procuradores afirmam, com base em depoimentos de testemunhas e documentos do Arquivo Público de São Paulo, que Terigoe foi levado ainda com vida para o DOI-Codi, e que foi enterrado com nome falso mesmo sendo conhecido pelos agentes (…)
De acordo com o procurador da República Sérgio Suiama, um dos autores da denúncia, o crime não está anistiado porque o corpo de Terigoe até hoje não foi localizado - portanto, seria classificado como um crime permanente.”
Se a Lei de Anistia anistiou os crimes, como é que ele pode, agora, ser punido?
A maior parte dos crimes acontece em um momento exato. Um homicídio acontece no momento em que o criminoso mata a vítima. O roubo no momento em que o criminoso subtrai o objeto que era da vítima. O estupro, no momento da violência sexual. Em todos esses casos, as consequências – tristes – ficam para sempre. Mas o crime em si é restrito no tempo.
Mas há alguns crimes – chamados permanentes – que eles se estendem ao longo do tempo. Em um sequestro, por exemplo, o criminoso continua a cometer o crime enquanto mantiver a vítima sequestrada. Isso pode durar anos. A cada instante durantes aqueles anos o criminoso está cometendo exatamente o mesmo crime. Por isso o chamamos de permanente: ele permanece ao longo do tempo. Até que o criminoso libere a vítima (ou a vítima consiga fugir, ou morra) o crime de sequestro estará sendo praticado. É um único crime, mas de longa duração. A pena é por um único crime e um único ato, independente se o crime durou uma semana ou um ano. O juiz vai aplicar uma pena maior ao que sequestro que se estendeu por maior tempo do que ao sequestro que durou pouco tempo, mas o crime é o mesmo e a pena possível (mínima e máxima) é a mesma.
Se o preso político durante a ditadura militar foi morto, isso é homicídio e esse homicídio aconteceu em um momento exato. Ou seja, ele foi exaurido com a morte da vítima. Como os crimes políticos e os relacionados aos crimes políticos cometidos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 foram anistiados pela Lei 6.683 (a chamada Lei de Anistia), não é mais possível considerar o criminoso culpado por tal crime.
O que os procuradores da República na matéria acima fizeram foi dizer que quem matou também escondeu o corpo. E a ocultação de cadáver é um dos crimes permanentes. A acusação não é pelo homicídio, mas apenas pela ocultação do cadáver. A ocultação de cadáver se prolonga ao longo do tempo até que o cadáver seja finalmente encontrado. Logo, o argumento dos procuradores é que, embora o crime tenha começado no momento coberto pela Lei de Anistia (antes de 1979), ele permanece até que o cadáver seja encontrado. E como ele permanece até hoje, ele pode ser punido.
E mais: como ele permanece no tempo, o tempo para a contagem da prescrição (que nada tem a ver com a anistia) é contado apenas a partir do fim do crime. Como o crime ainda estaria ocorrendo, a prescrição para a ocultação de cadáver (que ocorre em 8 anos) não começa a contar até o dia em que a permanência do crime termina, ou seja, até o dia em que o cadáver não está mais oculto.
Um último detalhe importante: não podemos confundir crime permanente com crime continuado. Embora em português os termos sejam sinônimos, em juridiquês, são coisas diferentes.
Crime continuado é aquele em que o criminoso pratica crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, os crimes subsequentes são tidos como continuação do primeiro. É o caso, por exemplo, do servidor public que todo dia se apropria de um pequeno bem da repartição, ou do vigia noturno que todo dia leva um objeto para casa. Cada uma de suas ações é um crime separado (peculato no primeiro caso, e furto, no segundo), mas porque é evidente que eles estão conectados (é sempre a mesma pessoa agindo da mesma forma) é aplicada apenas a pena de um só crime (do mais grave, se fossem crimes diferentes), aumentada entre um sexto e um terço.